Literatura

Ensaios Colectâneas

Filha de uma professora particular e de um poeta, cresci numa casa de livros. Não me recordo do primeiro contacto que tive com eles, mas lembro-me de uns em tecido, que levei para o banho vezes suficientes para deixar desbotados e ilegíveis.

Como a maior parte das meninas da minha geração, cresci na companhia da Anita – no campo, na praia, na cozinha, no ballet, a cavalo, de cama com gripe – e da desventurada Sofia, alter ego da Condessa de Ségur. Mas estas personagens habitavam as prateleiras do meu quarto, e havia tantas outras com um recheio interessante…

Por esses anos, os meus grandes achados literários eram, como as colheitas, sazonais: ocorriam geralmente no fim da Primavera, quando tinha lugar uma limpeza rigorosa às dezenas de livros da sala-biblioteca da minha mãe. Por a casa onde cresci ser bastante húmida, os livros não se limitavam a acumular o tradicional pó no alto do miolo, ganhando também manchas de bolor na face interior da capa e da contracapa.

O pó era cuidadosamente escovado com pequenos pincéis, mantendo o miolo comprimido, enquanto retirar o bolor obrigava a abrir os livros. E aí era a minha perdição: gastava mais tempo a ler passagens dos volumes – sobretudo daqueles a que dificilmente tinha acesso noutras ocasiões – do que a remover os vestígios do mofo.

Foi numa dessas limpezas exaustivas, aí pela Primavera de 1984, que me encontrei com a Poesia Completa de Bocage, três fabulosos volumes ilustrados que ainda estão nas estantes maternas. Numa idade em que os desenhos animados Era Uma Vez a Vida ou a série O Corpo Humano me iam elucidando a prestações sobre a sexualidade humana, um mundo novo abriu-se… não a meus pés mas nas minhas mãos: tinha descoberto a poesia erótica bocageana! Como se de uma era se tratasse, findara a idade da inocência.

Claro que, perdido por cem, perdido por mil, daí em diante fui tendo acesso aos livros mais e menos “próprios para a idade” (essa discutível noção). E claro que, ao dispor de uma parca mesada, a gastava integralmente nos alfarrabistas da cidade, regateando até os vencer pelo cansaço para comprar o que ainda faltava lá em casa. Devo também dizer que muitas das suas sugestões foram perspicazes q.b. para ainda hoje lhes estar grata.

Com uma biblioteca pessoal que aumentava a olhos vistos, atravessei a adolescência com um trapo enrolado debaixo da porta do quarto (da parte de dentro) para que ninguém percebesse, através da luz delatora, que eu lia pela noite fora. Nesses anos, chegava sempre às aulas da manhã a dormir por dentro.

Comecei, pois, por ser uma leitora interessada, ávida mesmo, que, paralelamente, ia alinhavando os costumeiros versos, esboçando pequenas histórias e escrevendo páginas de diário como se não houvesse amanhã.

Até que, estando eu no 10.º, 11.º ano, a minha então professora de Português, Ana Pedro, levou para uma das aulas um exemplar do DN Jovem, suplemento literário juvenil do Diário de Notícias coordenado pelo jornalista Manuel Dias.

Não corri a enviar textos, mas o rastilho ficou acesso e, a 22 de Setembro de 1994, vi pela primeira vez um conto meu ali publicado. Nesse instante senti que, dentro de mim, algo se transformara e que jamais voltaria a ser a mesma.